Greve dos caminhoneiros reacende debate sobre legislação trabalhista

Condições precárias de trabalho tem a ver com leis que não são eficientes na proteção da dignidade trabalhista dos caminhoneiros.

A recente mobilização dos caminhoneiros iniciada em 21 de maio, e que praticamente parou o país por mais de 10 dias, suscitou uma série de questões. Para além da pauta principal que defendia a redução do preço dos combustíveis e o fim da cobrança de pedágio sobre eixo suspenso, muitos dos grupos mobilizados demandavam “melhores condições de trabalho”.

Vídeos e imagens que circularam pela internet, além de inúmeras opiniões dadas pelos caminhoneiros mobilizados demonstravam que existia, e ainda existe, um descontentamento generalizado com a falta de condições para o exercício da profissão.

De maneira geral, os grevistas reclamaram do baixo valor do frete – o que gerou a discussão sobre a ainda incerta tabela do frete mínimo -, da infraestrutura precária das rodovias e de alguns pontos de parada, da falta de segurança e da desvalorização da profissão exercida por eles.

A situação de precariedade nas condições do trabalho, seja em termos de remuneração, de descanso ou de infraestrutura e segurança, tem a ver principalmente com a legislação que regulamenta a profissão de caminhoneiro no país.

Ela é regida por um conjunto de normas que inclui a Lei 13.103/2015, a Lei 11.442/2007, o Código de Trânsito Brasileiro, decretos e resoluções do Conselho Nacional de Trânsito e dos Departamentos Estaduais de Trânsito, bem como a Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) no caso dos motoristas contratados.

Uma das grandes questões desse conjunto de leis é apresentada pelo texto da 11.442. Em seu art.2º, ela diz: “A atividade econômica de que trata o art. 1º desta Lei é de natureza comercial, exercida por pessoa física ou jurídica em regime de livre concorrência”. Isso significa que a Lei regulamenta o exercício desse mercado a partir de um regime aberto, de livre concorrência entre Transportadores Autônomos de Cargas (TAC), ou seja, os caminhoneiros autônomos, e as Empresas de Transporte de Cargas (ETC).

Na prática, isso quer dizer que a lei não vê distinção entre as condições de participação de ambas as partes neste mercado de trabalho. Para o trabalhador autônomo, essa determinação é extremamente problemática, já que ele não apresenta as mesmas condições de competir com as empresas de transporte de carga, ficando sujeito a uma série de abusos, como a terceirização do seu trabalho e o agenciamento de cargas.

Para que fique mais claro, analisemos alguns dados relacionadas à isso! De acordo com os números do Registro Nacional do Transportadores Rodoviários de Cargas (RNTRC) da Agência Nacional de Transportes Terrestres, existem cerca de 484 mil transportadores autônomos de carga registrados no Brasil. Existem também cerca de 663 mil veículos registrados como propriedade de transportadores autônomos. Tais números revelam uma média de 1,4 veículos aproximadamente por TAC.

O RNTRC ainda revela que existem cerca de 145 mil transportadoras de carga registradas atualmente no Brasil. Todas essas empresas possuem uma frota de, aproximadamente, 1,087 milhão de veículos, o que resulta numa média de 7,5 caminhões por empresa de transporte de carga.

Tais números evidenciam não só o alto poder de acumulação de propriedade privada das empresas de transporte, mas também seu elevado potencial de participação no mercado, em detrimento dos caminhoneiros autônomos. Tal desigualdade fica ainda mais evidente se levamos em conta que tais transportadoras possuem veículos de diferentes tamanhos que podem rodar sem restrições e carregar os mais variados tipos de carga.

As desigualdades no setor ficam ainda mais gritantes quando se trata da idade média dos veículos. Os dados do RNTRC mostram que a idade média dos caminhões leves (3,5 a 7,99 toneladas) de caminhoneiros autônomos é de 19,7 anos, enquanto que a idade média desse mesmo tipo de veículo das empresas de transporte é de 9,9 anos.

A diferença é maior em se tratando dos caminhões simples (8 a 29 toneladas). Entre os autônomos, esses veículos possuem uma média de idade de 23,4 anos. Já entre as empresas, o mesmo tipo de caminhão apresenta uma média de idade de 10,9 anos.

A pesquisa “Perfil do Caminhoneiro”, divulgada pela Confederação Nacional dos Transportes em 2016, também fornece importantes dados para analisarmos a atual condição do caminhoneiro autônomo. Antes de analisá-los, no entanto, vale pontuar que a pesquisa entrevistou 1066 caminhoneiros, sendo 729 deles autônomos, e 337 empregados de frota.

De acordo com os dados, os caminhoneiros autônomos entrevistados tem uma renda líquida média mensal de pouco mais de 4 mil reais, enquanto que os empregados de frota chegam a ganhar em média R$3.800 por mês. Nesse quesito, os autônomos também apresentam mais chances de terem melhores salários, já que 15% dos entrevistados declarou ganhar entre 5 e 10 mil reais mensais.

No entanto, a pesquisa ainda revela que 52,5% dos caminhoneiros autônomos possuem dívidas a quitar. Cerca de 35% dos caminhoneiros autônomos entrevistados disse que possui caminhão próprio, mas que o mesmo não está quitado. Destes, 23,2% demorará de 25 a 36 meses para pagar o financiamento; 27,1% de 37 a 48 meses e 23% de 49 a 60 meses.

Isso significa que metade dos caminhoneiros autônomos que tem veículos financiados demorará pelo menos 3 anos para quitar suas dívidas. Essa realidade, portanto, compromete boa parte do rendimento dos caminhoneiros.

Para além do custo fixo gerado pelo parcelamento dos veículos, os autônomos também sofrem com outros custos de produção como o combustível, os pedágios, a manutenção dos veículos e a insegurança nas estradas.

De acordo com a pesquisa da CNT, 46,4% dos entrevistados, autônomos e empregados, vê justamente no combustível o principal problema para o exercício de sua profissão. Mais de 40% dos entrevistados também disse que o preço do frete não cobre os custos de trabalho. Cerca de 37% dos motoristas revelou que os assaltos e roubos são o principal problema para a atividade.

Outros fatores foram apresentados como problemas para o exercício da profissão de caminhoneiro como o custo dos pedágios, o risco de acidentes, a falta de infraestrutura e problemas de saúde como fadiga e stress.

Um dado importante revelado pela pesquisa é sobre a imagem que o caminhoneiro imagina que a sociedade tem dele. Em 2015, 44,7% dos entrevistados respondeu que acredita que a sociedade em geral acha que eles são irresponsáveis. Podendo responder mais de um item, mais de 55% deles acredita que a sociedade imagina que eles também são imprudentes no trânsito e usuários de drogas. Apenas 12,6% dos caminhoneiros marcou que acha que a sociedade pensa que eles são importantes para a economia do país. Se essa pergunta tivesse sido realizada atualmente para os mesmos entrevistados, provavelmente as respostas teriam sido diferentes. Durante o movimento grevista, muitos caminhoneiros ganharam consciência do seu papel social e profissional. A sociedade sentiu o impacto da crise do abastamento generalizado e pode perceber a importância da categoria para o desenvolvimento econômico do país.

No entanto, apesar do recente reconhecimento, os caminhoneiros, sobretudo os autônomos e agregados, continuam sofrendo com a falta de condições para o exercício de sua profissão. A discussão é antiga, já que desde muito tempo, as longas jornadas de trabalho, o consequente uso de drogas para permanecer acordado, a insegurança e o preço baixo do frete vem sendo questionados não apenas no âmbito profissional, mas também político.

Mas, ainda é visível que muitos caminhoneiros trabalham em condições degradantes. Para além dos próprios problemas infra estruturais, como rodovias em mal ou péssimo estado de conservação, falta de postos com estrutura para paradas, refeição e descanso, os motoristas lidam com a insegurança gerada pelo roubo de caminhões e cargas, com a não fiscalização do cumprimento do controle de jornada e com uma rotina de trabalho que, em alguns casos, pode ser desumana.

Essa realidade também gera danos à saúde, como hipertensão, diabetes e problemas vasculares e musculares. A pesquisa já citada da CNT, mostrou que mais de 16% dos caminhoneiros entrevistados já teve problemas na coluna. A condição sedentária da atividade profissional também tem outras consequências: 25,1% dos entrevistados apresentam obesidade grau I, além de outros 42,3% estarem acima do peso.

Esse quadro é agravado, e também permitido, por uma legislação que não tem conseguido, de fato, assegurar os direitos dos caminhoneiros, principalmente os autônomos e agregados. Em grande medida, o conjunto de normas citado nessa reportagem, não é capaz de assegurar a digna participação dessa categoria social num regime de livre concorrência desse mercado, vulnerabilizando não só as condições de trabalho, mas também o próprio trabalhador.

Um bom exemplo para pensarmos essa questão, é o recente impacto da Lei 13.103/2015. Segundo a pesquisa da CNT, apesar de que mais de 88% dos entrevistados dizem conhecer a Lei do Motorista, apenas 29,6% deles declara cumprir a Lei e o tempo de descanso. Dos que não cumprem a lei e o tempo de descanso (34,7%), mais de 40% são autônomos e 21% empregados de frota.

Mais da metade dos caminhoneiros entrevistados disse que a Lei não atende as suas necessidades, e 61% deles alegou que a rotina de trabalho permaneceu a mesma depois da entrada em vigor da nova lei.

A todo esse quadro há que se agregar outras questões. A maioria dos caminhoneiros que cumprem o tempo de descanso e as demais determinações da Lei 13.103/2015 são, de fato, os empregados de empresas de transporte. O que explica essa diferença é o maior rigor do controle da jornada de trabalho, seja por tacógrafo ou por outros equipamentos eletrônicos, e também o enquadramento desses profissionais dentro de uma legislação mais ampla de proteção aos direitos sociais como as determinações da CLT. Os caminhoneiros autônomos e os agregados, por sua vez, atuam praticamente num “vazio” de legislação social. Isso também é consequência da falta de fiscalização adequada do cumprimento da Lei 13.103, o que faz com que tais profissionais continuem dirigindo por horas extensivas e sem descanso.

Além disso, a maioria desses motoristas ainda é muito dependente do agenciamento de cargas para o exercício de sua profissão, o que lhes retira autonomia, fazendo com que eles se sujeitem a fretes cada vez mais baixos e à exploração de grandes embarcadores, como indústrias e o agronegócio.

Há que se considerar também as defasagens da legislação específica da categoria. Uma delas é justamente causada por todas as alterações que foram realizadas na antiga Lei 12.619/2012, o texto inicial da lei do descanso. Tais alterações acabaram por flexibilizar aqueles que eram considerados os “pilares” de sustentação do direito social dos caminhoneiros: controle da jornada de trabalho, tempo máximo de direção, descanso diário e semanal obrigatório, e fim do pagamento por comissão, ou seja, pagamento por produtividade.

De acordo com o relato do jurista Paulo Douglas Almeida de Moraes, o histórico da ação civil pública que gerou a Lei 12.619 remonta ao ano de 2007, quando, em Rondonópolis, o médico do Ministério do Trabalho foi procurado por uma senhora que se dizia “viúva de um marido vivo”. O relato dessa senhora revelou que seu marido fazia uso extensivo de um coquetel de drogas para permanecer acordado e dirigir por várias horas sem parar.

Após essa denúncia, o MPT foi as rodovias amparado pela Polícia Rodoviária Federal e investigou cerca de 100 caminhoneiros, que realizaram o exame toxicológico. Constatou-se que 22% deles estava usando alguma espécie de substância. Dentre eles, 68% usavam cocaína e 32% anfetamina. Em uma nova ocasião, em 2011, o MPT do Mato Grosso do Sul foi novamente as rodovias e constatou que o número de usuários de drogas, bem como os tipos de drogas utilizadas pelos caminhoneiros, havia aumentado.

“Como evoluiu isso de 2007 para 2011? Em 2007, assistíamos a 103 mil acidentes. Em 2011, pulamos para 192 mil. Feridos: de 65 mil para 106 mil. Mortos: de cinco mil e oitocentos para oito mil e seiscentos. Isso apenas em rodovias federais policiadas. O número de mortos, como já dito, chegou à casa de 43 mil, de um modo geral.”, firmou Paulo Douglas em seu artigo.

De acordo com o Procurador, naquela época, o setor de transportes rodoviário havia superado o da construção civil no quesito “letalidade” em acidentes de trabalho. Isso significa que o que gerou a necessidade de se criar uma lei para controlar a jornada e permitir o descanso dos caminhoneiros, foi o alto índice de acidentes com mortes e o número gritante de profissionais da categoria fazendo uso de drogas para permanecerem acordados.

Para Paulo Douglas, a Lei 12.619, fruto de quatro anos de debates, atacava a um tripé de causas que gerava essa realidade: descontrole de jornada, baixa remuneração e pagamento variável por meio de comissão. “É um conjunto que leva o trabalhador à auto exploração. Em busca de uma remuneração digna, esse trabalhador se submete a longas jornadas e, obviamente, com todos os efeitos que já foram aqui demonstrados.”, avalia.

Logo que foi sancionada, no entanto, a Lei 12.619 começou a ser revista por uma Comissão (CEOMOTOR) na Câmara dos Deputados. A principal justificativa para sua revisão, no entanto, era de que a infraestrutura das rodovias brasileiras não oferecia pontos de parada adequados para o cumprimento do controle da jornada de trabalho.

A discussão de um novo texto para a Lei do Motorista se pautou, portanto, na flexibilização daqueles que eram considerados os pilares de sustentação da dignidade trabalhista dos caminhoneiros.

Integrada em grande parte pela bancada ruralista, a Comissão de revisão da Lei conseguiu prevalecer os interesses desse setor econômico e a nova lei 13.103 foi sancionada em março de 2015. Uma breve revisão no quadro de votação do novo texto, revela quem são os deputados e senadores que apoiaram a aprovação da atual legislação. No final das contas, além de flexibilizado o controle da jornada de trabalho, do descanso obrigatório diário e semanal, e dos descansos entre jornada, também voltou a ser permitido o pagamento por comissão.

A aprovação da nova lei em 2015 gerou o repúdio de uma série de entidades. O Congresso Nacional foi acusado de estar barganhando a vida do caminhoneiros em nome de interesses alheios aos da categoria.

A principal frente contra a nova legislação foi formada pelo Fórum Nacional em Defesa da Lei 12.619, que reuniu entidades como as Federações dos Trabalhadores Rodoviários de São Paulo – FTTRESP e do Paraná – FETROPAR, além de ter contado com o apoio do próprio Ministério Público do Trabalho e da Federação Internacional dos Trabalhadores em Transportes.

O fato é que essa caminhada representou a interrupção do avanço da legislação social para os caminhoneiros. Se a Lei 12.619/2012 não era perfeita, a flexibilização promovida pelo atual texto fez com que a própria lei perdesse sentido.

Atualmente, o quadro é de falta de fiscalização, além de precarização cada vez mais constante e dura do trabalho dos caminhoneiros. A lei 13,103/2015 não só não altera a rotina de trabalho dos caminhoneiros, como mostra a pesquisa da CNT, como não promove a digna participação desses trabalhadores no mercado, assegurando-lhes direitos sociais e melhores condições de trabalho. Além disso, estamos longe de discutir e garantir aos caminhoneiros autônomos, por exemplo, outros direitos, como previdência social por tempo de trabalho.

Larissa Jacheta Riberti para Chico da Boleia | FOTOS: Karol Moraes (Disparadora/Retina Insurgente)

Informações citadas:
MORAES, Paulo Douglas Almeida de. “A dignidade do trabalhador e o meio ambiente do trabalho no setor de transporte”. Revista TST, Brasília, vol. 80, no 1, jan/mar 2014.
Pesquisa CNT Perfil dos Caminhoneiros disponível em: http://www.cnt.org.br/Pesquisa/perfil-dos-caminhoneiros
A Comissão Especial de revisão da Lei 12.619 foi integrada pelos seguintes parlamentares: Presidente: Nelson Marquezelli (PTB/SP); 1º Vice-Presidente: Vanderlei Macris (PSDB/SP); 2º Vice-Presidente: Vilson Covatti (PP/RS); 3º Vice-Presidente: Hugo Leal (PSC/RJ); Relator: Valdir Colatto (PMDB/SC).
Sobre o Fórum Nacional em Defesa da Lei 12.619, ver: https://regulamentacao.wordpress.com/
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