Jurista Ives Gandra Martins analisa o fim da Carta Frete

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Considerado um dos juristas de maior atuação na área do Direito Tributário no Brasil, o Dr. Ives Gandra Martins gentilmente acolheu o nosso convite e concedeu uma entrevista sobre o fim da Carta Frete. Doutor em Direito pela Universidade Mackenzie, o jurista graduou-se na área por uma das escolas mais renomadas do país, a Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Gandra também possui especialização em Direito Tributário e exerce grande papel nos debates nacionais sobre o tema.

Durante a entrevista, realizada no dia 12 de agosto, o jurista falou a Chico da Boleia sobre os problemas trabalhistas e tributários que a prática ilegal da Carta Frete pode acarretar nos dias de hoje. Esse tipo de pagamento de Frete, que condiciona o caminhoneiro a utilizar determinados serviços e produtos – visto que ele fica obrigado a utilizar a Carta em postos e restaurantes previamente autorizados – foi definitivamente proibido em 2010, com a entrada em vigor da Lei 12.249.

Através dessa norma determinou-se que, “o pagamento do frete do transporte rodoviário de cargas ao Transportador Autônomo de Cargas – TAC deverá ser efetuado por meio de crédito em conta de depósitos mantida em instituição bancária ou por outro meio de pagamento regulamentado pela Agência Nacional de Transportes Terrestres – ANTT”. Além disso, a regra determina que a conta do favorecido, esteja no nome do caminhoneiro que realizou o transporte da carga.

Os responsáveis pelo cumprimento da lei são, de acordo com a Lei, “O contratante e o subcontratante dos serviços de transporte rodoviário de cargas, assim como o cossignatário e o proprietário da carga”. Caso não haja cumprimento, todos eles estão passiveis de penalização.

A abolição da Carta Frete contribuiu para que o caminhoneiro tenha mais liberdade na hora de gastar o seu dinheiro. Além disso, promove a formalização do exercício desses trabalhadores e objetiva também a sua participação em programas de crédito e incentivos de renovação de frota e caminhões.

No entanto, ainda hoje alguns transportadores insistem em contratar fretes e pagar os caminhoneiros por meio da Carta Frete. Foi sobre essas questões que falou o Dr. Ives Gandra Martins. Confira essa entrevista exclusiva na íntegra.

Chico da Boleia: Dr. Ives, se não houvesse a Lei que aboliu a carta frete, por si só essa prática teria algum valor?

Ives Gandra Martins: Não teria valor. E a meu ver desde o Código do Consumidor não se poderia mais praticar a Carta Frete. O artigo 39 do Código de Defesa do Consumidor diz que não é possível condicionar o fornecimento de produto ou de serviço ao fornecimento de outro produto ou serviço, bem como sem justa causa nos limites quantitativos. Nós já tínhamos no artigo 39 do Código de Defesa do Consumidor, no inciso I e no inciso V, a proibição da Carta Frete. Eu não posso condicionar alguém que presta um serviço e dizer, vou pagar dessa maneira e vou pagar abaixo do valor porque, evidentemente, estou dando um bem que terá que ser negociado e será negociado abaixo do valor que esse bem representa. E evidente que este combate à Carta Frete que os caminhoneiros têm, com justa razão, trabalhado e trabalharam no passado  – cheguei a dar um parecer no Sindicato, isso em 2008 – era uma luta que nos Tribunais isso está decidido há muito mais tempo. Agora no momento, com Lei, é evidente, e a meu ver, configura um crime sério com base no Código Penal, artigo 292, porque há uma série de aspectos na Carta Frete que economicamente, tributariamente, juridicamente, socialmente, representam uma violência contra a ordem econômica e a Constituição.

O primeiro deles é de que há uma imposição do mais forte sobre o mais fraco, quer dizer, só lhe daria serviço se este aceitar a Carta Frete e que é condicionar o cidadão a poder comprar gasolina só em determinados postos, se alimentar só em determinados restaurantes, ou seja, limitando o aproveitamento daquele pagamento de preço. Segundo, a evidência de um pagamento prévio. Isso representa o quê? Um valor inferior, porque muitas vezes o caminhoneiro, precisando de recursos, vende essa Carta Frete num valor muito menor do que o valor do serviço que ele está prestando. Em terceiro lugar isso permite, digamos, aos transportadores – não é que eles façam –, mas abre um campo enorme para a sonegação de tributos. Porque a Carta Frete representa quase uma transmissão de bens e não um pagamento, um cheque, ou algo semelhante, o que faz com que o poder público possa ser lesado com o recolhimento menor de tributo por parte do transportador. E socialmente é iníquo, porque a pessoa que é obrigada a trabalhar e que tem como seu único bem o caminhão, que representa a necessidade de servir-se dele para prestar um serviço, sendo condicionada, desta maneira, a ser praticamente um escravo de um sistema no qual ele não pode se rebelar porque se pratica (a Carta Frete) a larga. Foi por isso que eu dizia no parecer, levando em consideração o Código Penal e o Código de Defesa do Consumidor, que a utilização da Carta Frete atentava contra a ordem jurídica brasileira, contra a Constituição, razão pela qual teria que haver – como houve – um movimento que levou, evidentemente, a se considerar ilegal a utilização da mesma.

Chico da Boleia: É preciso entender que quem está argumentando isso é o jurista Dr. Ives Gandra Martins e não o Chico da Boleia sobre a gravidade da utilização da Carta Frete. Mesmo antes da Lei que aboliu esse sistema informal de pagamento, ele já estava…

Dr. Ives Gandra Martins: Perante o Código de Defesa do Consumidor, que é de 1990 já era considerado ilegal.

Chico da Boleia: …esse sistema já era ilegal. Quer dizer que a Lei que aboliu a Carta Frete só veio reforçar essa ilegalidade. Doutor Ives, nós estamos aí já com alguns anos desde que a Lei foi publicada e a gente ainda vê no mercado – e sabemos que é por que movimenta um dinheiro muito alto – empresas fazendo uso desse sistema. Qual o encaminhamento jurídico que poderia haver a respeito?

Dr. Ives Gandra Martins: A utilização, por ser ilegal, teria que haver uma contestação. Muitas vezes o caminhoneiro, isoladamente, tem dificuldade de contestar, pois iria perder o cliente. Não tendo oportunidade de conseguir serviços, ele é obrigado a aceitar um sistema de imposição. O caminho seria, evidentemente, entrar em juízo em grupo, porque em grupo ficaria o ônus – para a discussão judicial – muito menor do que para aquele que individualmente tivesse que arcar com o custo – não valeria a pena a discussão individual. E até em levar a questão ao Ministério Público, fazendo as denúncias correspondentes àqueles que teimam em não respeitar a Lei, para que haja uma apuração. Agora, eu creio que o sindicato dos senhores, as associações, os transportadores, devem ter um diálogo que mostre o seguinte: se os senhores não abolirem definitivamente, não adotarem um sistema eletrônico que garanta a todo mundo e que permita a justa remuneração e não uma remuneração defasada – esse diálogo poderia levar a uma solução mais adequada com a vantagem de que se esses senhores não fizerem vai-se ao Ministério Público, à Receita Federal, em juízo levando a questão, o que fará com que o bom senso termine prevalecendo. Eu sou sempre favorável à discussão prévia de todas as questões judiciais.

Temos uma justiça lenta, com um número de processos – para que se tenha noção, Chico, nós temos, no Brasil, 93 milhões de demandas para 200 milhões de habitantes, praticamente nós temos meia demanda por habitante no Brasil mostrando desde o bebê que nasceu até o velho que está morrendo. E isso faz com que a justiça não possa ser mais rápida, são 18 mil magistrados para 93 milhões de questões que estão correndo na Justiça trabalhista, na justiça comum, na justiça federal, na justiça militar. Então isto faz com que a conversa, a busca de um diálogo, seja melhor. É bem verdade que a ameaça no Ministério Público é uma ameaça forte. O MP independente do poder judiciário pode exigir um TAC (Termo de Ajustamento de Conduta). Então eu tenho a impressão, eu aconselharia primeiro o diálogo, fracassando o diálogo entrar nesses três caminhos: mostrar o perigo para o erário, segundo o Ministério Público para que acolha e a justiça para que o direito seja respeitado.

Chico da Boleia: E como é que a gente pode explicar, do ponto de vista do Direito, que quando se cria uma normatização com a Lei do pagamento eletrônico, seja depósito em conta, seja via cartão, para o companheiro que está na estrada, que é muito diferente da Carta Frete? Como a gente explica juridicamente isso?

Dr. Ives Gandra Martins: Na Carta Frete ele tem um instrumento extremamente limitado. Se ele precisar de dinheiro ele vai vender aquela Carta Frete por um valor menor do que o serviço que ele está prestando. Se ele recebe via cartão de débito ou se ele recebe via sistema eletrônico, ele vai receber o valor integral e vai utilizar o dinheiro. Ele tem direito, porque está prestando aquele serviço. Carta Frete ele está limitado a determinados estabelecimentos, a determinados postos de gasolina e se precisar de dinheiro ele vai vender por um valor menor do que vale a Carta Frete. No outro sistema ele tem de prontidão, de imediato e à disposição, o dinheiro que está sendo colocado, além do que o sistema eletrônico faz com que, efetivamente, haja um comportamento melhor de todos os personagens que atuam na área. Porque é um sistema facilmente controlado pelo poder público.

Chico da Boleia: Como com esse sistema eletrônico, o caminhoneiro sai da informalidade e vai para a formalidade, com a sua experiência, quais os ganhos que caminhoneiros e carreteiros têm a partir do momento que saem da informalidade?

Dr. Ives Gandra Martins: Na informalidade a única vantagem é o fato de não pagar tributos e a grande desvantagem é que se pegarem vai se pagar tributos com muita multa. Eu conheço inúmeros estabelecimentos que atuavam na informalidade e quando foram fiscalizados esses estabelecimentos tiveram que fechar. Eles não suportaram o que deixaram de pagar mais a multa. Por exemplo, no Imposto de Renda é de 150% do valor do imposto, o que era muito superior ao próprio ganho. Levando em consideração a correção monetária, taxa Selic, tudo isso, passa-se a ter um valor impagável. Então há uma vantagem, digamos, momentânea e um risco permanente. A outra “vantagem” é imediatamente afastada quando se verifica que essa Carta Frete representa um valor menor do que efetivamente ele teria direito. E se vierem pegar, se em algum momento houver uma denúncia, significa que se ele negociou a Carta Frete por um valor inferior, o fisco vai entender não um valor inferior, mas o valor da Carta Frete. Então vão cobrar tributos, multas, correções sobre o valor nominal, apesar de que pra ele (caminhoneiro) o valor foi inferior, porque ele teve que negociar para poder obter recursos de imediato. Então essas são as vantagens e desvantagens da informalidade.

A grande vantagem da formalidade é de que ele tem a total tranquilidade e controle, recebe o dinheiro, recebe o seu trabalho pelo valor real do serviço prestado, não corre risco nenhum e dorme tranquilo. Não fica essa preocupação de seis anos, pra ver sobre aquele frete que fez há seis atrás, se durante todo esse período o fisco não vai pegar. Por isso que eu sempre mostro que a informalidade é um risco que não vale a pena correr.

Chico da Boleia: E agora do ponto de vista do cliente final. Vamos colocar da seguinte forma: eu contrato o autônomo com Carta Frete para entregar um produto para um terceiro que não tem conhecimento disso, mas ele vai receber esse produto através desse caminhão. Ele pode ser responsabilizado pelo uso indevido da Carta Frete?

Dr. Ives Gandra Martins: Veja, a responsabilidade dele só seria porque o contrato da Carta Frete do caminhoneiro é com o transportador. Quem está recebendo a mercadoria não tem nenhuma relação com o transportador, a não ser que houvesse – e aí é um problema mais com o transportador do que com o caminhoneiro – um problema de ICMS, onde os fretes são considerados para efeito do cálculo do Imposto sob Circulação de Mercadorias e Serviços, mas quem é responsável por um lado é o transportador e quem é responsável do outro lado, se houver solidariedade, se ele tiver conhecimento, seria efetivamente o comprador ou adquirente. No caso do transportador, o caminhoneiro em si, ele não corre o risco por ele estar a serviço do transportador e não dele pessoalmente. Agora, na eventualidade de na Carta Frete isto ficar na informalidade absoluta, ele é corresponsável como transportador. Não o adquirente, mas como transportador que, evidentemente, quando mandou o que está adquirindo, ele (o adquirente) está recebendo uma nota com o valor do frete lá estabelecido sem saber das relações do transportador com o caminhoneiro. O transportador sempre corre risco, solidariamente, e o caminhoneiro pela informalidade. Só se for de pleno conhecimento e houver uma vinculação entre o adquirente e o transportador é que aquele poderá sobre algo, o que é raríssimo que aconteça.

Chico da Boleia: É importante que os companheiros caminhoneiros e carreteiros saibam que, desde o ponto de vista do Código de Defesa do Consumidor a prática de pagamento via Carta Frete já era proibida, visto que, como bem apontou o jurista Dr. Ives Gandra Martins, não se pode condicionar a prestação de serviços nem o consumo de bens. Além disso, temos que ter em mente a necessidade de fazer valer a lei e desconstruir o mito de que se recebermos através do meio eletrônico de pagamento, alguém “cuidará” do nosso dinheiro. Não, isso não é verdade! O meio eletrônico garante que só o possuidor do cartão, ou seja, o caminhoneiro, determine como e onde gastar o frete recebido.

Dr. Ives Gandra Martins: Exatamente!

Chico da Boleia: Doutor, que recado o Senhor deixa para os nossos companheiros caminhoneiros e carreteiros autônomos?

Dr. Ives Gandra Martins: Não abram mão do seu direito! Esse direito tem que ser exercido e quando se começa abrir mão dos direitos, nós ficamos nas mãos daqueles que exploram e a própria ordem jurídica fica fragilizada. Se cada um na sua profissão não abrisse mão dos direitos que tem e os exercesse, evidentemente nós estaríamos hoje com um país muito melhor. Eu entendo que se o caminhoneiro atuar na lei, não só ele é beneficiado e vai receber o que ele tem direito, como também está contribuindo para que haja a preservação da ordem jurídica do país, principalmente no seu segmento.

Entrevista realizada por Chico da Boleia em 12/08/2014.

Transcrição e texto final: Larissa Jacheta Riberti

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