Neste mês é celebrada a campanha Janeiro Branco, que visa conscientizar e informar a população sobre os cuidados com a saúde mental. Segundo um levantamento da Organização Mundial da Saúde (OMS), o Brasil é o país com mais pessoas diagnosticadas com transtornos de ansiedade em todo mundo. A pandemia provocada pelo coronavírus agravou ainda mais este quadro, em cerca de 25%, incluindo ainda a população com depressão.
Os caminhoneiros e as caminhoneiras foram alguns dos mais afetados durante o auge da pandemia, aumentando o número de diagnósticos de depressão e ansiedade entre os profissionais. Responsáveis pelo transporte de 70% do total de cargas em todo o país, os profissionais continuaram suas atividades, até mesmo durante o período do lockdown (isolamento).
A Associação Brasileira de Medicina do Tráfego (Abramet) destacou em um estudo que parte dos acidentes de trânsito envolvendo caminhoneiros (as) estão ligados a questões mentais, incluindo transtornos, devido as falhas comportamentais.
A redação do Chico da Boleia conversou com psicóloga Letícia Scarlatelli para entender melhor sobre o tema saúde mental e de que maneira esses profissionais podem cuidar do seu bem-estar, garantindo qualidade de vida e segurança durante o trabalho.
Redação C.B.: Para quem trabalha como motorista, quais são os principais fatores que podem afetar sua saúde mental?
Scarlatelli: Existe uma série de atravessamentos que podem gerar impacto na saúde mental de trabalhadores, de motoristas principalmente. Eles estão em contato com um ambiente que não está exatamente sobre o controle deles, o tempo todo. Então, isso gera ansiedade; como se os motoristas precisassem estar em um estado de alerta maior, porque esse ambiente gera uma série de imprevisibilidades. A estrada, a rotina na estrada, é imprevisível e eles precisam ter um grau de atenção muito alto. Os sentimentos de ansiedade e medo são importantes, são emoções muito parecidas e necessárias para a sobrevivência, para reações rápidas em momentos de perigo. Porém, podem também incapacitar a pessoa quando ultrapassam um determinado grau, provocando desequilíbrio emocional, e até mesmo físico, e prejudicando a rotina desse trabalhador. Resultando ainda em somatizações que podem, com o tempo, provocar outros transtornos mentais, ou piorar o quadro atual.
Redação C.B.: Uma pesquisa recente revelou que acidentes e mortes no trânsito são provocados, em sua maioria, pelo comportamento humano. Como o cuidado com saúde mental pode ajudar a reduzir esses dados?
Scarlatelli: Por ser uma profissão que acaba tendo um desequilíbrio devido à constância em liberações de adrenalina e cortisol no cérebro, esses fatores podem afetar os nossos reflexos de alguma forma, pois gera exaustão. Então, o que acontece é, para que esses motoristas (que estão em contato com uma rotina estressante, de alta demanda e com muitos riscos) atuem com segurança, precisam estar extremamente atentos, o tempo todo. Mesmo que estejam descansados, que andem bem devagar, o nível de atenção deve ser muito alto para que possam controlar ao máximo seu ambiente. É importante lembrar ainda que são pessoas que vão estar em diferentes rotas, destinos, muitas vezes longe da família e amigos, e isso interfere no pensamento, muitas vezes fazendo-os fugir do presente, afetando a direção no caminhão. Então, existem maneiras para que a gente regule a ansiedade ou tratar essa atenção plena, ser capaz de focar, de perceber os seus pensamentos e não os reprimir, mas direcioná-los e retornar ao momento presente. Existem exercícios que podem ajudar a manter o foco de atenção. Por exemplo, quando estiver na estrada, o motorista pode buscar/procurar mais caminhões da mesma cor que o seu ou ver quantos passam e tentar buscar trazer a atenção para aquele momento de alguma forma, porque isso reduz essa liberação de ansiedade. Se ficar mais atento aos alertas gerados pela rotina, as falhas de comportamento humano acabam diminuindo, porque o corpo está em equilíbrio, ou seja, menos exausto também. Então, é esse tipo de exercício para dia a dia; sem sombra de dúvida, quando esse trabalhador realmente se preocupa com a saúde mental, ele passa a regular sua rotina, a se alimenta bem, a se respeitar, a respeitar seus ciclos e suas necessidades básicas. Consequentemente, isso irá gerar um equilíbrio e vai trazer ao comportamento humano, com certeza, uma diminuição de falhas.
Redação C.B: A depressão é um dos principais transtornos diagnosticados em caminhoneiros. Quais são os principais sintomas do mesmo e como as pessoas podem identificá-los?
Scarlatelli: Alguns dos sintomas mais comuns são: dor no peito e sensação de angústia (ansiedade), medo, culpa, irritabilidade, insônia ou excesso de sonolência (dependendo do caso), tristeza profunda, abuso de substâncias, pensamentos suicidas, dentre outros. Ao identificar esses sinais, dependendo da intensidade, é preciso procurar ajuda imediatamente, tanto psicológica quanto psiquiátrica. Quando falamos de estado emocional, estamos falando sobre formas de olhar a vida, sobre o ponto de vista. Então, ser capaz de identificar isso será primeiro passo, o mais importante. Quando estamos em um estado depressivo, pedir ajuda é muito difícil, principalmente se estivermos sozinhos. Nesse caso, procurar ajuda é fundamental, bem como buscar apoio da família e amigos, socializar, realizar atividades agradáveis, manter-se positivo e mais. Por exemplo, viajar com outras pessoas, ter uma rota onde tem outros companheiros que vão também fazer trajetos similares ou ter paradas nas quais saiba que vai encontrar outras colegas ou conhecidos, e fazer desses momentos algo positivo, agradável, familiar. Precisamos ser capazes de viver um dia de cada vez, entender que o nosso estado emocional acontece nesses momentos e, é ali que a gente é capaz de se perceber, e assim, de ter controle sobre aquilo que está nos controlando temporariamente.
Redação C.B: Por que ainda hoje existe tanto preconceito quando o assunto é saúde mental?
Scarlatelli: É preciso entender que estamos em um estado de transição. Se a gente for olhar que a psicologia chegou ao Brasil e foi entendida como uma prática profissional há apenas 60 anos, é muito pouco tempo para que isso seja aceito por uma cultura e como algo que tem desenvolvimento, porque essa é a grande questão. Como não se tinha um conhecimento sobre o nosso funcionamento, existe muito essa ideia de que “as coisas são como são”, “então é assim mesmo” e “isso é frescura”, como muitos dizem. Os posicionamentos negativos quanto à prática e as pessoas que sofrem com os transtornos atrapalham, absurdamente, a procura por ajuda, por auxílio. Apesar disso, vemos uma mudança no comportamento da sociedade, de mais respeito e entendimento; estamos em transição. Somente por podermos falar sobre esse tema com tranquilidade e difundir nosso conhecimento, expandir os pontos de vista, esses fatores ajudam no processo de aceitação e de mudança no preconceito da população.
Saiba como buscar ajuda
Atualmente, o Sistema Único de Saúde (SUS) conta com uma estrutura de atendimento voltada para a saúde mental. A Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) tem como objetivo tratar, de forma humanizada, pessoas com transtornos mentais (incluindo o abuso de substâncias psicoativas). A pessoa pode buscar ajuda nas Unidades Básicas de Saúde (UBS), no Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), nas Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) e até mesmo solicitando o SAMU, pelo telefone 192. Hospitais e prontos-socorros também oferecem atendimento a pacientes com transtornos mentais
Em casos de crise ou emergências (se a pessoa não consegue sair de casa ou tem pensamentos suicidas), há também o Centro de Valorização da Vida (CVV), que é formado por voluntários e promove o apoio emocional e a prevenção do suicídio. O contato do CVV é pelo telefone 188 ou pelo chat disponível no site da organização: www.cvv.org.br. Lembrando que é a ligação é gratuita e o serviço está disponível 24h.
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